Hoje não estamos habituados à terminologia utilizada por São João da Cruz sobre o qualificativo “anagógico” para denominar os atos de nosso amor a Deus que,na teologia da mística,levam-nos às coisas do alto. Com “o sentido anagógico – diz-nos o Catecismo –,podemos ver realidades e acontecimentos no seu significado eterno, o qual nos conduz (em grego: «anagoge») em direção à nossa Pátria.[1]Assim, a Igreja terrestre é sinal da Jerusalém celeste” (Ct.I.C.,117), mas isso sempre sobre a base do sentido literal.
Interessa-nos aqui o verbete anagógico pelo fato de que o Doutor Místico recomenda que nos momentos de prova, especialmente, acudamos a esses “atos anagógicos”. Curiosamente, o Santo não tratou deles de forma organizada, só de passada e dentro da sua pedagogia espiritual. As notícias mais extensas sobre este tema do magistério oral do Frei João sabemo-las pelo seu companheiro em Baeza, Frei Eliseu dos Mártires(†1620), nos depoimentos do processo de canonização, nos Ditames 3 e 5 (cf. texto completo no Anexo, I).[2] Além disso, João da Cruz, nos seus Ditos de Luz e de Amor, mais concretamente nos que ele chama: “Pontos de amor” dedicados às Carmelitas de Beas,[3]num desses pontos nos fala abertamente de tais atos, enquanto em outros pontos, sem mencioná-los, insiste na mesma realidade. Quando tratemos os efeitos que têm ditos atos, estudaremos esse “ponto”.
E sem sair do Carmelo de Beas, encontramos ali outra notícia que nos leva ao mesmo tema, é a simpática pergunta que um dia lhe fez a Ir. Catarina da Cruz. Ela queria saber a causa que movia às rãs da tina, ou depósito de água, da horta a se lançarem para o fundo da água ao ouvir algum ruído. O Santo respondeu-lhe ser porque “aquele era o lugar e centro onde tinham segurança para não serem atacadas e poderem subsistir; e que assim havia de fazer também ela: fugir das criaturas e lançar-se e mergulhar no fundo e centro, que é Deus, escondendo-se Nele” (Ditames, n.21 - Alonso,f.87v).
A pequena cidade de Beas está na Serra de Segura, no norte de Andaluzia, a pouca distância da mais importante e episcopal Baeza (72 km), onde nosso Santo conviveu com Frei Eliseu, quem nos diz do Pe. Frei João da Cruz que “conservava uma constante perseverança na oração e no exercício da presença de Deus, assim como nos atos e movimentos anagógicos e orações jaculatórias” (Ditamem 3).
Todos esses dados, agrupados, nos fazem pensar que foi nesse tempo que o Santo passou entre Baeza e Beas – entre 1578 e 1587 – que seu espírito se deteve especialmente no tema dos atos de amor anagógicos.
Consignemos desde o começo que, seguindo o que nos diz Frei Eliseu, o Santo considerava que tais atos eram uma ajuda especial para ficar livres das seduções dos inimigos da alma e perseverar no amor divino.
– Objetivo deste estudo
Nestas linhas, ousadamente, vamos tentar aprofundar em que consistem os atos anagógicos, sem pretender, de modo algum, esgotar a matéria. Como fundamento dos mesmos, devemos lembrar que, pela graça do santo Batismo, fomos sepultados com Cristo na morte para uma vida nova (cf.Rm 6,4), de modo que, com o Apóstolo, cada um pode assegurar: “Vivo eu, mas não eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Comentando esta passagem, Scott Hahn e Curtis Mitch nos salientam:
“Os fiéis têm uma vida natural e biológica (vida humana) e também uma vida sobrenatural e teológica (vida divina)” (Comentário à carta aos Gálatas, p.32. Ed. Ecclesiae. São Paulo,2017).
E certamente é assim: a nossa vida natural se manifesta na fraqueza herdada de Adão, acarretando tantas limitações; a vida divina, pelo contrário, é a de Cristo em nós, esperança da glória (cf.Cl 1,27). Desse modo, cada um de nós levamos um grande “tesouro em vasos de barro” (2Cor 4,7).
O Santo castelhano, ao falar dos atos que comentamos, assinala que quando a pessoa se encontra seduzida a afastar-se da fidelidade a seu Senhor, ela deve reagir com meditações e pensamentos que a coloquem perante a Verdade; em seguida, Frei João, passa a recomendar outro método melhor: os “atos anagógicos”.
A esses atos, no magistério oral que nos transmite Frei Eliseu, são chamados uma vez “atos e movimentos anagógicos e amorosos”, outra “ato ou movimento de amor anagógico”, ou em plural, “movimentos anagógicos e amorosos” e, por fim, “atos de amor anagógicos”. Enos Pontos de Amor, já referidos: “ciência” elevada,“atos anagógicos, que tanto incendeiam o coração”(n.137).
Perante todas estas alusõesa os atos anagógicos, onde se insiste no amor, é interessante que, examinando-os o Bto. Maria-Eugênio do Menino Jesus (†1967), os qualifique de:“exercício da fé” e, entorno da virtude da fé faça girar tais atos (Queremos ver a Deus. Cp. VII, pp.170-173). O Bem-aventurado os situa como formando parte da discrição paulina da “armadura de Deus”, onde se nos convida a empunhar “sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno” (Ef 6,11-16).
– Os atos anagógicos são atos de amor ou atos de fé?
É justo que nos façamos esta pergunta. Bem examinados ditos atos, e dentro da doutrina do mesmo Apóstolo, poderíamos assegurar que são atos de uma “fé operante pelo amor” (Gl 5,6). Daí o efeito que têm paraSão João da Cruz denos subtrair da tentação, pois só a verdade da fé autêntica – em lábios de Jesus – nos faz livres (cf. Jo 8,32). É por isso que Sto. Tomás assegura: “prima conversiofit per fidem – a primeira conversão acontece acreditando”: (S.Th., I-IIae, q.113,a,4). Já vimos no “ponto de amor” 137, que João da Cruz fala de um “saber”, de uma “ciência” que fazem referência a atos da inteligência, perante a fé, mas que“ incendeiam o coração”, movendo-a a fazer atos de amor.
Fica claro, sobretudo, que tais atos de amor não têm sua raiz no de eros, mas no de ágape, na caridade nascida da fé teologal, conforme o que São João da Cruz escrevia num outro lugar:
“Sendo Deus inacessível e incompreensível, a vontade não há de pôr a sua operação de amor – que deve pôr em Deus – naquilo que o apetite pode tocar e apreender, mas no que não pode compreender nem alcançar por meio dela. E, dessa maneira, a vontade fica amando, com certeza e deveras, ao gosto da fé, também no vazio e na escuridão de seus sentimentos, sobre todos os que ela pode alcançar com o entendimento de suas inteligências, crendo e amando além de tudo quanto pode entender. Assim, muito insensato seria aquele que, por lhe faltar a suavidade e o deleite espiritual, pensasse que por isso lhe falta Deus e, quando a tivesse, se regozijasse e deleitasse pensando que por isso possuía a Deus” (Carta a um religioso carmelita).
E não só isso, os atos anagógicos, precisamente por ser anagógicos, são atos também da virtude teologal da esperança, pois a alma não suspira pelos bens terrenos, senão pela posse das realidades eternas, almejando delas viver. Santo Ambrósio tem um belo texto no qual,especulando entre a saída deste mundo de Enoque e o significado de seu nome – “homem” –, ele nos diz:
“Enoque é aquele que chamou e esperou para invocar Deus, e por esta razão acredita-se que ele foi transportado [da terra para o céu]. Portanto, não parece que é um "homem" senão aquele que espera em Deus. Mas o significado claro e verdadeiro da passagem é que quem espera em Deus não deve permanecer na terra, mas que, como se fosse transferido para outro lugar, deve se aderir a Deus” (Sobre Isaac ou a alma, 1,1).
E dentro dos Padres do Deserto, encontramos eco desta mesma visão, assim, p.e., Cassiano coloca em lábios de Abba Pafnúcio as seguintes palavras:
“Vale dizer, aquele cujos olhos do coração o Senhor já desviou de todas as coisas presentes, fazendo com que ele as julgue, não apenas como transitórias, mas ainda como coisas já passadas, iguais à fumaça que se desvanece no nada. Assim como Henoc, já anda com Deus, como que transferido da vida e dos costumes humanos, e já não vive em meio às vaidades do século presente. Quanto a Henoc,ele foi arrebatado também corporalmente, como nos ensina o texto do Gênesis: Henoc andou com Deus, depois desapareceu, pois Deus o arrebatou (Gn 5,24). E diz o Apóstolo: Foi pela fé que Henoc foi levado, afim de escapar da morte (Hb 11,5)” (João Cassiano. COMFERENCIAS, 1 a 7. Vol 1, pp.89. Mosteiro Santa Cruz-MG. Juiz de Fora, 2003.
– Efeitos dos atos anagógicos
Segundo o magistério oral de São João da Cruz transmitido por Frei Eliseu, mercê à espontaneidade e brevidade de tais atos de amor, eles elevam o “nosso afeto a Deus, porque com essa diligência já a alma foge da ocasião e se apresenta a seu Deus e se une com Ele”.“Desse modo – o assim provado –, consegue vencer a tentação e o inimigo não pode executar o seu plano, pois não encontra a quem ferir, uma vez que a alma, por estar mais onde ama do que onde anima, subtraiu divinamente o corpo a tentação”. Concluindo o Ditame: “Portanto, não acha o adversário por onde atacar e dominar a alma; ela já não se encontra ali onde ele a queria ferir e lhe causar dano” (Ditame5º).
Por tanto, esses atos propiciam que nós não estejamos com a intenção onde nos encontramos fisicamente, mas que nos levemos a estar espiritualmente – com a força de nosso desejo – aonde a graça batismal nos faz já habitar (cf.Ef 2,6). Isso não é outra realidade que aquela da qual nos fala o próprio Jesus, ao afirmar: “Onde está vosso tesouro, ali estará o vosso coração” (Lc 12,34).
Sim, o efeito que a pessoa sente – mesmo psicologicamente – é que, “como esquecida do movimento vicioso e junta e unida com seu Amado, nenhum movimento sente do tal vício”, porque “subtraiu o corpo” e “estando a alma unida a seu Deus e entretida com Ele, as tentações não encontram a quem ferir, pois não podem elevar-se ao nível a que a alma subiu, ou até onde foi elevada por Deus, onde nenhum mal te atingirá (Sl 90,10)” (Id.).
De certo, para se unir com Deus, o homem não tem outro caminho mais firme e seguro que o do amor. O próprio Santo no-lo diz: “Se de alguma maneira pode a vontade atingir a Deus e unir-se a Ele, não é por qualquer meio apreensivo do apetite e sim pelo amor” (Epistolário. Carta XII).
Esses raciocínios do mítico Doutor nos vêm a dizer que quando a pessoa separa seu afeto das realidades somáticas, de seu viver natural, para aderir-se às da graça, é lá onde verdadeiramente ela está. Ao proceder assim, a pessoa está procurando conformar-se com aquele conselho do Apóstolo:
“Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto, onde Cristo está entronizado à direita de Deus; cuidai das coisas do alto, não do que é da terra. Pois morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,1-3).[4]
Mas, além do transmitido por Frei Eliseu, é bom analisar aquele “Ponto de amor” onde é o mesmo Santo quem, pessoalmente, nos diz a quê se chama atos anagógicos; daí poderemos tirar mais efeitos desses atos. Diz:
“Veja aquele saber infinito e aquele segredo escondido! Que paz, que amor, que silêncio se alojam naquele peito divino! Que ciência tão elevada a que Deus ali ensina, é o que chamamos atos anagógicos, que tanto incendeiam o coração!” (n. 137).[5]
Desse enunciado, se nos é permitido, poderíamos formular a seguinte definição:
Atos anagógicossão aqueles que direcionam o olhar da alma amante para o Amado, descansando no peito divino, no silêncio dum segredo escondido, onde às escuras o Senhor ensina uma elevada ciência com aquela paz e amor que tanto incendeiam o coração.[6]
Por este ponto do santo de Fontiveros, podemos acrescentar que tais atos não só nos elevam às realidades do alto, na Fé, mas que dentro dum não-saber sabendo, “às escuras”, o amante descansa no coração do Amado, ficando sobriamente aquecido e incendiado. Isso traduzir-se-ia numa “advertência amorosa” dentro do que poderíamos chamar uma nuvem de não saber sabendo.[7]
Sem dúvida que podemos nos questionar se o Santo teria lido a obra “Nuvem do não-saber”, escrita entre 1350-70 por um autor anônimo, hoje é identificado como um monge inglês da Cartuxa de Beauvale, em Nottinghamshire.[8] Esta obra que se encontrava em muitas celas da Cartuxa de Londres, quando uma boa parte de seus monges foram martirizados por Henrique VIII entre 1535 e 1540. Pelo menos, quando em 1564 nosso santo ingressou na Universidade de Salamanca, lá teria ocasião de encontrar obra tão bem-conceituada na época.
–Elementos essenciais dos atos anagógicos
Talvez podemos condensar em três os elementos essenciais dos atos anagógicos. Eles seriam:
Essas duas últimas notas, poderiam considerar-se uma só, mas preferimos diferenciá-las, pois nas “aspirações às realidades últimas, escatológicas” queremos significar que ditos atos fitam para a vida que esperamos, enquanto que na terceira nota – a de elevar-nos “espiritualmente, ali onde está o nosso desejo” – nos faz entrar, realmente, na posse do bem já almejado, ainda que, todavia, não(cf.1Jo 3,2).
– Manifestações dos atos anagógicos
Como todos os atos humanos, estes, anagógicos, podem ser apenas interiores ou exteriores. Quer dizer, internas e devotas elevações espirituais – mais ou menos breves –, ou ser formulados por meio de palavras, a modo de dardos, jaculatórias. Sobre o peso das palavras, nos diz Bento XVI:
“Humanamente falando, a palavra, a nossa palavra humana, é quase nada na realidade, um sopro. Assim que é pronunciada, desaparece. Parece que é nada. Mas já a palavra humana tem uma força incrível. São as palavras que depois criam a história, são as palavras que dão forma aos pensamentos, os pensamentos dos quais deriva a palavra. É a palavra que forja a história, a realidade” (Meditação à Hora Tercia. 06-10-2008).
Vemos, portanto, que uma jaculatória, uma palavra, é suficiente para mudar a vida de uma pessoa. Deste modo, podemos afirmar que toda jaculatória ou elevação são um ato anagógico desde que nasça do amor, seja proferida em aspiração às realidades eternas e ali eleve o nosso coração.
Já vimos acima como Frei Eliseu nos dizia de São João da Cruz que ele se exercitava “nos atos e movimentos anagógicos e orações jaculatórias” (Ditamem 3).Ele mesmo menciona no final do Ditamem 5, esta jaculatória do Santo: “Lembrai-vos da promessa feita ao vosso servo, na qual me destes esperança”(Sl 118,49).
Por vezes, as características dos atos anagógicos se dão nas jaculatórias de forma explícita, outras só implicitamente, pois ainda que o amor de Deus e a aspiração às realidades últimas não sejam mencionados, por esse amor e esperança estão motivadas; p.ex., a preferida de São Estanislau Kostka: “Ad maiora natus sum - nasci para coisas maiores”.
Nessa esteira, são famosas algumas jaculatórias que, inseridas no mistério pascal, deram direção à vida dos santos. Para João da Cruz: “Pati et contemnipro Te. – Padecer e ser desprezado por Vós!” Em Inácio de Loyola: “Ad majorem Dei gloriam. – À maior glória de Deus!”. Assim como para outros: “Ad Jesum per Mariam. – A Jesus por Maria...!” Ou a recentemente recomendada pelo Pe. Paulo Domínguez: “Senhor, eu te prefiro a Ti...!”
Na prática, as jaculatórias são favoráveis pelo fato de serem rápidas e aplicáveis em meio à labuta diária, enquanto que as elevações – se são um pouco dilatadas – requerem deter nosso ritmo normal ou fazê-las nos momentos de oração propriamente ditos. Santo Agostinho já fazia ressaltar essa característica das jaculatórias, ao afirmar:
“Os irmãos de Egito se exercitam em orações freqüentes, mas muito breves e como lançadas em um abrir e fechar de olhos, para que a atenção se mantenha vigilante e alerta e não se fatigue nem se embote com a prolixidade, pois [esta] é tão necessária para orar” (Ep. 130, 20).
A oração monológica São Bruno: «O Bónitas – Ó Bondade...!», é um desses atos. Ela é a expressão estereotipada do que ardia no seu coração. Compreendemo-la dentro do que ele mesmo escreveu a seu amigo Raul sobre a conversa mantida um dia no jardim da casa do cônego Adão, em Reims, onde falaram das coisas perecedouras e dos gozos da glória eterna; escrevia:
“Ardendo em amor divino, prometemos, fizemos voto e decidimos abandonar em breve o mundo fugaz, para ir em busca do eterno (et æternacaptare)” (A Raul,13). Ou quando afirma: “Que outro Bem há senão só Deus? Daqui que a alma santa, percebendo em parte o incomparável atrativo, esplendor e beleza deste bem, inflamada em chama de amor, diga: A minha alma tem sede do Deus forte e vivo, quando irei ver a face de Deus?(Sal 41,3)”(Id.,18).
Mas se mergulhamos atentamente na Palavra de Deus, podemos descobrir nela exemplos de atos anagógicos; basta lembrar a passagem dos discípulos de Emaús tentados de desalento: uma vez que o misterioso Caminhante vai lhes abrindo à verdade do que a Escritura dizia sobre o Messias, eles fazem um de esses atos, dizendo: “Fica conosco, Senhor...!” (Lc 24,29). O resultado, eles mesmos o confessam: “Não ardia nosso coração quando ele falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”(Id v.32).
Pela citação de Sto. Agostinho vemos que as jaculatórias são bem antigas no monacato, não só para combater o torpor da carne, mas, em especial, para procurar a união com Deus, p.ex., lemos em São João Cassiano:
“Dizem que é mais vantajoso fazer orações curtas, e muito freqüentes: muito freqüentes para poder aderir-se constantemente a Deus com as invocações repetidas; e curtas, para evitar, com sua mesma brevidade, os tiros do demônio com que quer ferir-nos, sobretudo nesses momentos” (Inst.Cen. l.2, c.10).
Ele mesmo, em sua Conferência X, nº 10, propõe o v.12 do Salmo 71: “Vinde, ó Deus, em meu auxílio: Socorrei-me sem demora” para esse tipo de oração contínua.
Na Ordem Cartusiana, Hugo de Balma (ss. XIII-XIV), aconselha assim os atos de amor:
“A alma, depois de haver começado com um amor imperfeito e haver alcançado, com o exercício da meditação, a perfeição do amor, é consolidada com muito exercício no amor unitivo e elevada por cima de si pela destra do Criador, graças a seus freqüentes atos de amor e suas piedosas elevações..., está completamente arrebatada pelo mais vivo desejo de possuir a Deus” (De Mystica Theología. Prólogo, pp. 345-346).
Quer dizer, Balma colocava o acento, sobretudo, na força dos “freqüentes atos de amor” a Deus. E como isto pode parecer certa ousadia, perfilava:
“Se a alguém parecesse coisa presunçosa que uma alma envolvida em muitos pecados ouse pedir a Cristo a união do amor, pense para si que não há nenhum perigo, desde que primeiro tenha humildemente beijado os pés de Jesus em lembrança de seus pecados e, em segundo lugar, as mãos em reconhecimento dos benefícios recebidos; em terceiro lugar, se eleve ao beijo do amor, desejando apenas a Deus e só a Ele aderindo-se com inflamados afetos, de modo que suba ordenadamente” (Id.Cf. texto completo no Anexo VI).
Como vemos, desse modo, Balma saia ao encontro daqueles aos quais lhes pode parecer desencarnada uma espiritualidade de “afetos inflamados”, assegurando-lhes que não há o que temer se na prática – com uma consciência eclesial –,procuramos beijar os pés de Jesus com humildade, sabendo-nos pecadores e reconhecendo-o diante dos nossos irmãos, “membros” de Cristo, com um proceder manso e humilde e servindo-O neles (cf.Mt 25,34-40). E junto de seus pés, beijando suas mãos, cultivando uma sincera gratidão para com Ele e para com esses mesmos “membros” seus, dos quais tantas coisas boas recebemos cada dia.
Um aspecto importante que salienta este autor é que, nesses atos de amor, “a alma ascende a um grau mais elevado, no qual – sempre que quiser –, sem qualquer ato da inteligência, é tocada diretamente por Deus” (Id.). Em outras palavras, com eles, subtraímos nosso corpo à tentação, ascendendo à vida em Cristo, “transcendendo toda humana inteligência e guiada só pela regra do amor naufrague n’Aquele que é a fonte de toda a bondade” (Id).
E seguindo no conceito de ascender da vida natural à sobrenatural, Hugo acrescenta numa outra parte:
“De acordo com os Provérbios, é inútil estender a rede ante os olhos dos passarinhos (Pr 1,17); isto é, daquelas almas que, com atos de amor, voam como nuvens e como pombas a seus pombais (Is 60,8). A alma é então corroborada também na virtude da fortaleza, porque se adere com tanta veemência Àquele que ama sinceramente, que chega a querer mais sofrer mil vezes a morte do que ofender deliberadamente o seu Amado” (De MysticaTeologia,c.III,p.I,p.372I).
Também, depois, o cartuxo João Justo Lanspérgio (†1539), ao falar do Esposo do Cântico dos Cânticos e daquela sua frase: “Feristes o meu coração, irmã minha, esposa minha” (4,9), recomendava:
“Dirás essas jaculatórias, como também as orações vocais, com íntimo afeto de teu coração para unir-te a Deus no fogo ardente do seu amor” (Speculumchristianæperfectionis, c. 20, t. IV, 288).
São famosas suas elevações espirituais, verdadeiros dardos inflamados, atos anagógicos nos quais se cumprem as três condições acima apontadas, como por exemplo nesta:
“Doce Jesus, fere e acende meu coração num amor puro a Ti. Atrai até Ti todos os meus desejos; que minha alma tenha fome e sede de Ti só, a Ti só deseje, por Ti só suspire incansavelmente; que morra de amor por Ti e que todo o passageiro não lhe cause senão fastio” (Dardos inflamados da alma enamorada de Deus).
Por sua parte, o Pe. Mestre da Grande Chartreuse, Maurice Laporte (†1990), tem um texto muito próximo ao de São João da Cruz, onde diz:
“Como praticar a solidão do coração? Quanto a nós, temos de permanecer na linha cartusiana: nada de estratégia complicada nem de multiplicação de práticas. Voltar-se simplesmente para o amor de Deus, com um ato claro da vontade, cada vez que se nota que o coração vagabundeia; fazer o que se poderia chamar uma inflamada jaculatória do coração. Dirigir-se a Deus, transferir a Deus todo desejo, todo afeto, todo o domínio do sensível no que o ‘eu’ se busca tanto. Retificar a vontade com freqüentes atos de amor a Deus, e pouco a pouco se adquire o costume de se deixar a si mesmo para procurar o amor divino” (Solidão. Conferências do noviciado. T.I. Cp. IV. A Ascese da vida no deserto).
A diferença existente entre estas jaculatórias anagógicas e outras normais estaria, pois, sobre o acento que elas colocam sobre o amor e a esperança última.
Após citar estes autores anteriores a São João da Cruz – que insistem nos “atos de amor” –, vemos que ele, a tais atos, os chama “atos anagógicos”. É provável que Frei João tivesse lido a obra de Hugo de Balma: “Sol de contemplativos: Mystica Teologia”, amplamente difundida em Castela, pois foi traduzida pelos franciscanos de Toledo em 1514, onde se insiste nos atos de amor para nos aproximar de Deus. Assim, nosso Santo, depois de mostrar o caminho normal da leitura e da meditação para vencer os movimentos terrenos, aconselhava:
“Existe outra maneira mais fácil, proveitosa e perfeita de vencer vícios e tentações e adquirir e conquistar virtudes. Consiste no seguinte: a alma deve aplicar-se apenas nos atos e movimentos anagógicos e amorosos, prescindindo de outros exercícios estranhos; por este meio, consegue opor resistência e vencer todas as tentações do nosso adversário, alcançando assim as virtudes, em grau eminente, ... procuremos resistir opondo um ato da virtude contrária, segundo ficou dito, mas desde os primeiros assaltos, façamos logo um ato ou movimento de amor anagógico contra o vício em questão, elevando nosso afeto a Deus, porque com essa diligência já a alma foge da ocasião e se apresenta a seu Deus e se une com Ele.
Ora, desse modo, consegue vencer a tentação; ... por estar mais onde ama do que onde anima, subtraiu divinamente o corpo a tentação. Portanto, não acha o adversário por onde atacar e dominar a alma; ela já não se encontra ali onde ele a queria ferir e lhe causar dano” (Ditame 5º).
Como vimos, Balma chamava a esse subtrair-se da vida natural à sobrenatural da que falamos: ascender “a um grau mais elevado”; e João da Cruz: “estar [a alma] mais onde ama do que onde anima”. Essa subtração ou ascensão do natural ao sobrenatural não deve entender-se como desinteresse do primeiro, segundo o princípio de Sto. Tomás de que “a graça não suprime a natureza, mas a aperfeiçoa”(I,1,8,C). Com esses atos de amor sobrenaturais, portanto, colocamos ordem em nossos afetos naturais.
Seja como for, fica claro que os atos anagógicos são dardos abrasados que saídos do coração d’aquele que vive em Cristo e o transladam onde sabe mora pela fé, já, ainda que, todavia, não(cf.1Jo 3,2). É por isso que o mesmo São João da Cruz pergunta à alma enamorada:
“Mas como perseveras, ó vida, não vivendo onde vives...?” E ele mesmo comenta assim esta estrofe: “Para compreender essas palavras, é necessário saber que a alma vive mais onde ama que no corpo que ela anima; porque não tira sua vida do corpo, antes o vivifica, e ela vive por amor naquilo que ama”(Cântico Espiritual, estrofe 8ª, cp. 9,2).
E a uma monja, dirigida do Carmelo de Beas de Segura,João da Cruz lhe fez uma vez esta confidencia:
“Eu, minha filha, trago a minha alma dentro da Santíssima Trindade, e ali quer meu Senhor Jesus Cristo que eu a traga sempre”(JAVIERRE, J.M. Juan de la Cruz, un caso limite. Ed. Sígueme. Salamnca,1991).
Os Estatutos Cartusianos se fazem eco desta doutrina monástica tão antiga, quando aconselham:
“Sempre é aconselhável, enquanto se trabalha, recorrer pelo menos às breves orações chamadas jaculatórias.” (Est. Cart. 6,3).E num outro lugar:“O recolhimento de espírito durante o trabalho conduzirá o irmão à contemplação. Para conseguir isso, poderá recorrer sempre durante o trabalho a breves orações como dardos [amorosos], e inclusive interromper sua tarefa com essas orações” (Idem 15,10).
- Os atos anagógicos como ações
Chegados aqui, um tanto ousadamente, gostaríamos de acrescentar uma terceira forma de realizar os atos anagógicos: exercitá-los com ações concretas. Além de se poder manifestar estes com atos interiores ou proferidos verbalmente com jaculatórias, se é estamos a falar de “atos”, acreditamos que, mesmo se os autores citados não mencionam as ações concretas, elas também entram na categoria dos atos do ser humano.
Já vimos acima como Bento XVI nos lembrava que “a palavra humana tem uma força incrível. São as palavras que depois criam a história... É a palavra que forja a história, a realidade”. Portanto, guiada por uma palavra interna, ou por uma jaculatória, nós podemos fazer uma escolha, uma ação, a qual se ajusta às condições de um ato de amor anagógico. Por ex., assumir uma obrigação de nosso cotidiano que em nada nos atrai, mas que sabemos agrada ao Amado. Como esse “ato”, nos abraçamos ao Senhor aceitando e realizando sua vontade como um ato de amor a Ele, com nova coragem.
Nesta terceira interpretação, tampouco temos que ir muito longe para observar que contém as características dos atos anagógicos, basta-nos trazer à memória o que o mesmo Jesus nos prometeu:
“Quem acolhe e observa os meus mandamentos, esse me ama” (Jo 14,21). E pouco depois reitera e acrescenta: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Id,v.23).
Como vemos, esses atos partem do amora Deus e nos orientam para a meta de nossa esperança, que é Ele, e a Ele nos unem de fato.
Mas é bom ressaltar aqui que o amor é um ato que procede da vontade, não um fruto da sensibilidade cambiante. Sim, às vezes pode suceder-nos, como já dizíamos, que não sintamos um afeto sensível ao fazer um ato de amor. Nessas circunstâncias, o ato supremo de amor será sempre o de Jesus na cruz: por amor ao Pai, sem sentir gozo algum – ante um aparente abandono – Ele se aderiu amorosamente à sua vontade, entregando o espírito em suas mãos (cf.Lc 23,24).
Como é bom lembrar isto! Como é bom insistir em potenciar os atos de amor anagógicos nas ocupações que compõem nosso dia-a-dia, sobretudo quando estas nos resultam rotineiras, pouco atraentes, trazendo à memória que agradam ao Amado...! Isso é especialmente útil para combater o inveterado “demônio meridiano”, a acídia que aninha em nossa vida natural e tenta deter com seus movimentos a nossa vida sobrenatural. Essas ocupações são momentos privilegiados para tais atos de amor, de modo que nos elevemos dos movimentos naturais aos sobrenaturais, dizendo ao Senhor, por exemplo:
“Pelo Teu amor, meu Jesus, isto...!”, ou: “Que Tu estejas contente nisto...!”
A incidência dos atos anagógicos com o nosso cotidiano é muito importante, pois existe um plano de Deus Pai sobre sua criação,uma “obra”, pela qual, o mesmo Jesus suspirava:
“O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a bom termo a sua obra” (Jo 4,34).
Devemos procurar não nos esquecer de que quando com esses movimentos desejamos a Deus, estamos desejando o Céu. Bento XVI, comentando a petição de Jesus no Pai-nosso: Seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu, analisa qual seja a essência do Céu. Diz assim:
“Das palavras deste pedido duas coisas se tornam imediatamente claras: há uma vontade de Deus conosco e para nós, que deve tornar-se a medida do nosso querer e do nosso ser. E a essência do Céu consiste em que lá a vontade de Deus acontece inviolavelmente, ou, dito de outro modo: onde a vontade de Deus acontece, aí é o Céu. A essência do céu é a unidade com a vontade de Deus, a unidade de vontade e de verdade”. E, logo, reafirma: “A terra torna-se Céu [...] à medida que a vontade de Deus nela acontece, e ela é simplesmente terra [...] à medida que se furta à vontade de Deus. Por isso pedimos para que aconteça na Terra como no Céu, que a terra se torne céu” (Jesus de Nazaré. Do Batismo até a Transfiguração p.136).
Nessa esteira, os atos amorosos anagógicos – nascidos, como dissemos, duma fé vigorosa que alimenta o amor e se sustem na esperança –, são um valioso meio para consagrar todas as coisas a glória do Criador, como nos pede o Concílio (cf. LG, 34); são um modo valioso para exercer o sacerdócio batismal, perante o qual, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus (cf.At 2,42-47), oferecem-se a si mesmos como hóstias vivas, santas, agradáveis a Deus (cf.Rm 12,1).
–Com os pés no chão
Mas, todos reconhecemos que não somos anjos, por isso João da Cruz, como homem com o coração no alto, mas os pés no chão, adverte também, conforme nos transmite Frei Eliseu:
“O venerável padre frei João da Cruz disse neste lugar que se deve prevenir aos principiantes, cujos atos de amor anagógicos não são ainda tão rápidos e instantâneos, nem tão fervorosos, para que consigam, de um salto, ausentar-se completamente dali e unir-se com o Esposo, que, se perceberem que apenas essa diligência não basta para esquecer por completo o movimento vicioso da tentação, não deixem de opor resistência, lançando mão de todas as armas e considerações que puderem, até que cheguem a vencê-la completamente.
Devem proceder do seguinte modo: primeiramente, procurem resistir, opondo os mais fervorosos movimentos anagógicos que lhes for possível e os ponham em prática, exercitando-se neles muitas vezes; quando isso não for suficiente, porque a tentação é forte e eles são fracos, aproveitem-se, então, de todas as armas de piedosas meditações e exercícios que julgarem ser necessários para conseguir a vitória.
Devem estar persuadidos de que este modo de resistir é excelente e eficaz, pois encerra em si todas as estratégias de guerra necessárias e de importância” (Ditame 5º).
Muito bem está feita esta observação de Frei João, pois ainda que ele recomenda os atos de amor anagógicos a todos, indistintamente – principiantes e avançados na virtude –, Hugo de Balma os reservava, de modo especial, para os que caminham já pela via unitiva, dizendo:
“De maneira que a alma, depois de haver começado com um amor imperfeito e haver alcançado, com o exercício da meditação, a perfeição do amor, é consolidada com muito exercício no amor unitivo e elevada por cima de si pela destra do Criador, graças a seus freqüentes atos de amor e suas piedosas elevações. Está completamente arrebatada pelo mais vivo desejo de possuir a Deus, mais depressa de quanto se possa pensar, sem prévia ou concomitante reflexão, cada vez que lhe satisfaça, cem ou mil vezes ao dia ou à noite” (De Mystica Theologia. Prólogo, pp. 345-346).
Decerto, do amor mesmo, a Escritura nos diz que é “forte como a morte” (Ct 8,6), mas nem sempre esse amor está purificado até o ponto de realizar a verdade da fé no amor (cf.Ef 4,15), precisando ainda de uma ascese. Todos sabemos que dentre as três faculdades da alma – inteligência, vontade e memória –, a mais nobre de todas é a da vontade. Ela é a que decide; contudo, por si mesma, é cega, para seu exercício precisa da sua irmã, a inteligência. A vontade necessita das “notícias” exteriores a si que lhe fornece a inteligência, a fim de poder escolher entre a diversidade de opções assim conhecidas, do bem que mais goste; mas o “bem” que escolhe, infelizmente, nem sempre se ordena com seu Bem último, ficando num bem imediato desordenado.
É nessa situação, quando uma pessoa que ainda não está o suficientemente nutrida por uma séria leitura da Palavra, ruminada pela meditação até fazê-la guia de sua vida, que seus atos de amor ainda sejam imaturos para uma contemplação que a fortaleza perante as seduções dos inimigos, por mais que sim o esteja para a oração vocal. Esse crescimento no Amor divino, que começa pela renovação da mente, na fé, é da que nos assegura São Paulo:
“Precisais deixar a vossa antiga maneira de viver e despojar-vos do homem velho, que vai se corrompendo ao sabor das paixões enganadoras. Precisais renovar-vos, pela transformação espiritual de vossa mente, e vestir-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, na verdadeira justiça e santidade” (Ef 4,20-24).
A graça, mormente, não prescinde da natureza, vai conforme seus passos, por isso, primeiro vem a luz, logo o calor, para, depois, descansar na quietude; mas como esse processo não é exatamente lineal, por isso acreditamos que João da Cruz não hesitou em recomendar os atos de amor a todos. Mas ciente de que alguns não sejam ainda fortes na adesão ao Senhor, se tais atos não têm os efeitos desejados, lhes recomenda lançar “mão de todas as armas e considerações que puderem”.
Pela modesta experiência que temos, devemos confessar que a primeira arma que nos fez mais fortes em Cristo é a da luz da fé. Já dizia o mesmo Senhor: “A Verdade vos tornará livres” (cf.Jo 8,32). É por isso que o Apóstolo nos encoraja a empunhar o “escudo da fé” (Ef 6,11-16).
Voltando a nosso assunto, acreditamos que os atos anagógicos são um impulso que faz com que nosso coração seja transferido das coisas da Terra – em nosso dia-a-dia – para as realidades escatológicas, do Céu, as do Espírito, já presentes nela por graça. O mesmo Jesus nos assegurava: “Quem é da terra, pertence à terra e fala coisas da terra” (Jo 3,31); assim, quem nasceu da água e do Espírito(cf.Jo3,5), pertence ao Céu e aspira às coisas do Céu.
Por isso, bem compreendemos o que diz o Doutor Místico, que uma vez vinda a tentação a nossos desejos carnais, se acudirmos a tais atos de amor, ela “não encontra a quem ferir, uma vez que a alma, por estar mais onde ama do que onde anima, subtraiu divinamente o corpo a tentação”.
Nessa ascensão ou subtração, o ato de amor anagógico têm como resultado potenciar todas as energias da pessoa no seguimento do Amado. Às vezes isso é de um modo no qual participa sua sensibilidade, em outras, basta a sua racionalidade, como Jesus Cristo na hora do Getsêmani, aderindo-se com fervor à vontade do seu muito amado Pai (cf.Lc 22,42), no meio da sequidão mais total.
Portanto, com esses atos, a pessoa pode sentir o peso da labuta diária, sua cruz, mas não se cansa, não desiste de se abraçar com o Senhor, na sua vontade, por ser ela a manifestação do seu amor para com Ele. Lanspérgio o expressa deste modo:
“Devemos amar a Deus incansavelmente. Nós, nos cansamos nos caminhos do mal e da perdição (Sb 5,7), dizem os ímpios de quem fala a Sabedoria, mas no amor de Deus não há como se cansar. Por muito que alguém ame Deus, ele sempre O ama menos de quanto mereceria ser amado. Mais ainda, quanto mais ama um, tanto menos lhe parece amar. ... Aquele que está ébrio de amor, tem o impulso e a prontidão para toda obra boa. Ele sofre a miúdo, é verdade, mas não percebe, não sente a dor; fadiga-se, mas não se cansa”(Opera omnia, t. l, pp. 560-562).
São João da Cruz o afirmou depois com sua frase lapidar: “A alma que caminha no amor, não cansa nem se cansa” (Ditos de luz e amor, n.95; dentro dos Pontos de amor para as monjas Beas, n.18).
– Conclusão
Nossos Estatutos nos dão a razão última pela qual o Senhor nos trouxe ao Deserto, dizendo: “Para louvor da glória de Deus, Cristo, Palavra do Pai, escolheu pelo Espírito Santo, desde o princípio, homens que conduziu à solidão para uni-los a Si em íntimo amor” (1,1). E mais adiante acrescentam que, no ermo, “realiza-se ali um grande sacramento, o de Cristo e da Igreja, cujo exemplo eminente encontramos em Maria Santíssima; ele está latente em cada um dos fiéis, e a solidão têm a virtude de revelar melhor sua profundidade” (2,1).
Esse “íntimo amor”, essa união esponsal da alma de todo cristão com Cristo, deve ser o alvo de nosso desejo. Pelo qual ao sentirmos a vibração de sua chamada, o primeiro passo a dar é ir a Ele procurando conhecê-Lo intelectualmente por meio da leitura e da meditação, que desabrochará na oração e na contemplação do seu rosto.
Mas eis aqui que, em quanto peregrinos por esta vida, nos momentos menos pensados,nos deparamos com o confronto entre nos aderir a Ele, fazendo sua vontade, ou nos procurar a nós mesmos, seguindo a nossa. Quer dizer: entre optar pela vida nova, batismal, sobrenatural, ou pela velha, a natural. É para tais momentos que podemos nos aproveitar dos atos de amor anagógicos tratados nestas linhas, vivendo a vida sobrenatural de Cristo em nós, sem descuidar as exigências da vida natural.[9]Nesse caso, o de menos é se os exercitamos neles por meio de movimentos internos, ou com jaculatórias ou com as ações que por diante temos a executar em nossa rotina diária, dizendo a Jesus: Eu te prefiro a Ti...!
Em paralelo com o amor humano, o nosso amor para com Deus, aos começos, precisa de muitas “notícias”, a fim de crescer no seu conhecimento. Mas na medida que O amamos, aos poucos, as coisas vão se simplificando.
Mas nem assim o fascino que sentimos pelas “belas” formas deste mundo desaparece totalmente nesta vida, só quando estejamos no face-a-face (cf.1Cor 13,12) de quem é a Bondade repousaremos em paz.
Decerto, quantas vezes nos sentimos cativados por uma vaidade mundana, por uma beleza humana, por manter obcecadamente nossa opinião, e assim por diante... Que fazer então?
Quando isso notamos, urge vigiar e orar, como? Temos duas vias: ou aprofundar mais na Pessoa e exemplos do Amado – voltando à leitura e à meditação (que em todo momento são recomendáveis) –, ou, cientes de sua beleza soberana, com humildade e confiança, lançar-Lhe os incendiados dardos de nosso amor. Em outras palavras, ou aprofundar e ruminar mais na Palavra de Deus, ou nos exercitar nos atos amorosos anagógicos.
Tais atos, já vimos que não são nem coisa de magia, nem humanas técnicas frias, pois em matéria de amor, onde não há profunda conversão ao Amado, apenas haverá frágeis resultados, passageiras consolações. Mas quando a alma-esposa só aspira ser para seu Amado (cf.Ct 2,16), ela mesma aproveita-se das duas vias mencionadas, como melhor o vê, pois por experiência sabe que não todos os dias são iguais.
Que a Virgem Maria e São José nos ensinem a guardar em nosso coração tudo o que se refere a Jesus (cf.Lc 2,19), dirijamos nosso amor para onde está nosso Tesouro. Desse modo, os atos que temos comentado nos serão uma preciosa “escada” para atingir “ as coisas do Alto”.
Que assim seja para louvor da Trindade Uma e Trina!
Corações ao Alto!
O nosso coração está em Deus!
Um Cartuxo
Ascenção do Senhor, 11-05-2018.
[1] O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, na sua 5ª ed., assim define o verbete “Anagogia”: [Do gr. anagogé, ‘ação de fazer subir’, + ia.] S.F.1. Elevação da alma na contemplação das coisas divinas; êxtase, arrebatamento, enlevo. 2. Interpretação das Sagradas Escrituras, ou de outras obras, como as de Virgílio, Dante, etc., que permite passar do sentido literal ao sentido místico.
[2] Para todos os textos referentes a São João da Cruz seguimos aqui a ordenação dos mesmos feita no livro: “São João da Cruz, Doutor da Igreja. Obras completas”. Carmelo Descalço de Brasil. Ed. Vozes, 1984.
[3] A edição espanhola da BAC, de 1946, do Pe. Crisógono de Jesús, o.c.d, conserva esta coleção de 63 pontos, com entidade própria.
[4]A mesma sagrada liturgia nos convida a ditos atos, como podemos ver, na festa da Ascenção do Senhor, na Orac. Sobre as oblatas“Aceitai, Senhor, as nossas ofertas, para que assim como acreditamos que neste dia o Vosso Filho Unigênito e nosso Redentor subiu ao Céu, assim habitemos também nos Céus em espírito”. Sto. Agostinho, magistralmente, insiste nesse ponto ao falar da Ascenção e nossa participação nela (cf. no Anexo).
[5]Dentro da coleção Pontos de amor, que nos transcreve o Pe. Crisógono, ele é o n. 60 e leva em volta de si quinze pontos. Ver eles no anexo.
[6] Eis aqui alguns números dos Pontos de amor referidos, os quais guardam relação ampla com os efeitos anagógicos: “Não apascente o espírito senão em Deus. Despreze as advertências das coisas e traga no coração a paz e o recolhimento”(79); ou: “Tenha sossego espiritual em amorosa atenção a Deus, e, se preciso for falar, que seja com o mesmo sossego e paz” (80); ou: “Alegre-se sempre em Deus que é a sua saúde, considerando um bem sofrer, de qualquer maneira, por Aquele que é bom”(82). Também se podem ver os nn. 86, 87, 88, 95, 119, 142.
[7]Alguns “Pontos de amor” falam disso mesmo: “Ponha amorosa advertência em Deus, sem desejo de querer sentir ou entender coisa particular a respeito Dele” (n.86); ou: “Procure sempre que as coisas nada lhe signifiquem, e não signifique nada para as coisas, mas, esquecida de tudo, more no recolhimento com o Esposo” (n.91); ou também: “Desapegada do exterior, desapossada do interior, desapropriada das coisas de Deus, nem a prosperidade a detém nem a adversidade a impede” (n.123).
[8] CHADAN, José. “Misticismo e apofaticidade em A nuvem do não-saber de um escritor anônimo do século XIV”, p.25. Ed. Garimpo. São Paulo, 2017.
[9]A tenção entre a vida atual e a futura do cristão, sempre ocupou a atenção do discípulo de Cristo. Eis aqui um texto de São João Crisóstomo a esse respeito:“Nosso Senhor foi crucificado para trocarmos a vida atual pela vida futura; ou melhor, para que uma nos faça adquirir a outra. A atual, se procuramos estar atentos e vigilantes, conduz-nos à felicidade da eterna. Por pouco cuidado que ponhamos em abrir os olhos do espírito, saberemos aqui, na terra, alimentar sem cessar o desejo dessa felicidade; aprenderemos a negligenciar e desprezar o tempo presente, para não sonhar senão no futuro eterno, e seguir as lições deste santo que nos diz: “Agora vivo na carne, mas vivo na fé do Filho de Deus que me amou e se entregou por mim”(Gl 2,20)Vedes que alma de fogo, a que altura esvoaça este espírito, que amor por Deus neste coração inflamado! “Vivo agora, mas vivo na fé”. Não penseis que eu nada faça pelo que olha à vida presente. Mas, embora esteja ainda na carne e submetido às necessidades desta natureza, no entanto, vivo na fé, na fé de Cristo; é n'Ele que eu sonho sem cessar; a esperança que n'Ele tenho antecipa-me o futuro e leva-me a desprezar o presente (Hom. 27, sobre Jo 23.PG 59,159s;Hom, sobre Gn 6.PG 53,320).